segunda-feira, 3 de maio de 2010

Leia os muros!

Os homens inventaram as cidades, mas as cidades, por fim, reinventaram os homens. Erguemos cercas, depois muros que delimitam espaços e propriedades.
As cidades têm seu próprio tempo, envelhecem , se renovam. Os muros refletem essa dinâmica, trazem as marcas do tempo,dos conflitos, dos homens. Estive há pouco, no meio do mundo, que é dividido por uma grande muralha – ” a Muralha do Meio do Mundo.”



Fica na Paraíba, no Cariri. Ali, homens de outro tempo, anterior às cidades deixaram suas marcas, grafismos, com seu significado oculto no tempo. 700 anos? 1000 anos? Ninguém sabe ao certo.
De volta ao Rio de Janeiro passei a dar mais atenção aos muros e percebi que eles ganharam o ritmo das cidades e outras tantas funções que vão muito além de delimitar espaços e definir propriedades. Os muros definem também identidades e territórios ( lembrando que um território é um espaço, mas nem todo espaço é um território). Os muros são espaços de comunicação, de idéias, de arte e de conflito e disputas.
O que nos dizem os muros? É possível lê-los?
Nas cidades, a cor predominante é o cinza, nos prédios,viadutos,marquises e calçadas. Quebrando o monopólio do cinza, surgem os grafites reivindicando cores. Desenhos que interagem com pedestres e automóveis. Desenhos abstratos,
personagens, letras coloridas,”bombers”, lambe-lambe, cartazes, stencil. Palavras de ordem, de ironia, de amor, de inconformismo, que hoje estão ali, e amanhã já foram substituídas por outras palavras ou desenhos, por outros sentidos. Palavras de passagem, para leitores de passagem. E, como escreve Eduardo Galeano:”…somos muitos os que a cada dia comprovamos que as anônimas inscrições transcendem seus autores. Alguém, sabe-se lá quem, desafoga sua implicância pessoal ou transmite alguma idéia que lhe visitou a cabeça, ou desata a tomar as dores por si e pelos outros: às vezes esse alguém está sendo a mão de muitos”. E as paredes tornam-se assim a mais democrática de todas as imprensas.
Leia os muros! Escute os os muros!

HQ é coisa séria…



Neil Gaiman que me desculpe, mas tirei da gaveta um velho papel amassado e carcomido com um pequeno texto que escrevi há uns dez anos. Trata-se de uma adaptação livre, uma releitura, mal feita (e mal cheirosa) de uma parte de “Prelúdios e Noturnos”, do primeiro Arco da série Sandman, publicado no Brasil em meados da década de 90.

Sonho e Esperança são irmãos. Numa tentativa de desorientar a Humanidade, a Esperança foi raptada e separada do Sonho. Viver sem esperança é um pesadelo. Seguindo os rastros da Esperança (a esperança sempre deixa rastros), o Sonho chegou até as profundezas do Inferno. O Sonho tinha um nome, chamava-se Morpheu. O barulho era literalmente infernal, gritos de agonia e de dor tomavam todo ar. Ar?! Demônios, demônios, demônios de todas as hordas do inferno cercavam Morpheu, o mestre dos sonhos. Milhões deles em formação de batalha fitavam-lhe nos olhos. Olhares cheios de certeza. Um poderoso senhor do inferno levantou sua voz acima de todas as outras e, imediatamente, nada mais foi ouvido. Um silêncio também infernal. Esse mesmo demônio, cheio de ousadia, quebrou o silêncio e lançou uma pergunta a Morpheu:

- Você não tem nenhum poder aqui, que poder tem os sonhos no inferno?

Outra vez o silêncio…

A reposta veio em forma de pergunta, com a suavidade de um sonho e a força de um pesadelo:

- Vocês dizem que eu não tenho poder? Talvez tenham razão, mas dizer que os sonhos não têm nenhum poder aqui?

- Digam-me, perguntem-se…

- Que poder teria o inferno, se os prisioneiros daqui não pudessem sonhar com os céus?

Em seguida, nenhuma palavra foi ouvida, no entanto, a resposta foi dada. Lentamente, milhares de demônios baixaram seus olhares e suas armas, aos poucos o caminho foi sendo aberto.

Com passos firmes, o senhor dos sonhos prossegue sua jornada transitando livremente entre céus e infernos, afinal, sonhos e pesadelos são feitos da mesma matéria.

A humanidade com esperança acompanha os passos do sonho…

Bom Dia!


O dia está chuvento.Isso mesmo, com chuva e com vento.Faço um esforço danado pra levantar as pálpebras.
Banho, penso. Banho tomo, não pra me limpar, só numa tentativa de descolar as pálbebras. Tenho uma missão: dar bom dia a qualquer pessoa que passar por mim!

Ainda com preguiça, pego o elevador, por sorte está vazio, economizei um “bom dia!”.
Não por muito tempo, encontro a senhora antipática do 1003, aquela que nunca fala
comigo. Busquei no fundo da alma um “bom dia” radiante, com muito glitter.

Saiu sem brilho, baixinho, baixinho, cinza.
Ela não respondeu.

Dei um “bom dia” sincero ao porteiro, ao lixeiro, ao jornaleiro. Atravesso a rua para evitar algumas pessoas que vinham em minha direção. Dar “bom dia” é mais difícil do que parece, sinto como se fosse uma obrigação moral, não com o próximo, mas comigo mesmo. Algo como resgatar minha “humanidade” perdida na selva de pedra. Ando de cabeça baixa evitando a chuva fina, evintando pessoas. Numa esquina, numa grande poça d´água, vejo um reflexo, era quase eu, meio marrom. Enfim:_ Bom dia!

Raimundo: um conto Natalino




Brejo é um lugar alagadiço, cheio de lama.
Lugar onde vive o sapo.
O sapo pra quem não sabe é um bicho esquisito.
Vive meio na terra, meio na água.
Não tem pescoço nem rabo.
Sapo não fala,sapo coaxa!
Sapo não sabe fazer poesia.
Poesia é a arte do poeta.
Abstrata ou concreta.
Direta ou indireta.
Aparente ou discreta.
Pode ser presa a uma forma ou liberta.
Todo mundo é poeta!
Pra ser poeta não é preciso escrever,
basta transformar o que se sente e o que se vê em poesia.

Raimundo também vive no brejo, mas não é sapo.
Raimundo vive numa casinha cercada de sapos.
Raimundo engole sapos! Raimundo é pobre!
Pobre é quem não tem riqueza, pobre só tem pobreza.
Pobre é quem trabalha muito e pouco ganha.
Pobre é maltratado, explorado e esquecido.
Pobre não tem dinheiro.
Raimundo é pobre e , sem saber, é poeta!
É poeta porque sabe transformar tristeza em alegria.
Pobre também é gente…

Raimundo quando criança acreditava em Papai Noel!
Papai Noel sempre se esqueceu de Raimundo.
Raimundo cresceu e esqueceu de Papai Noel.

Papai Noel é rico, trabalha pouco e ganha muito.
Papai Noel é dono de uma fábrica de presentes.
É um velhinho gordo e contente.
Vive em um lugar frio, em outro continente.
É barbudo e usa roupa vermelha e quente.
Anda sempre carregando um saco de presentes.

Papai Noel caiu no brejo, lugar onde vivem os sapos e Raimundo.
Papai Noel , coitado, ficou atolado.
Papai Noel tinha muitos presentes pra entregar, ficou preocupado.
Chamou Raimundo e disse:
_Vai Raimundo, entregar os presentes.
Raimundo foi.
Papai Noel engoliu muitos sapos.
Nesse dia o pobre foi lembrado.
Raimundo girou o mundo.
E lembrou de todo mundo, não esqueceu ninguém.
Brejo,beco,mangue.
Viadutos, favelas, ruas…
Muita gente estranhou: que papai Noel diferente!
É magro, é sujo..é gente!
E naquele dia Papai Noel existiu pra todo mundo!

A Verdade existe



Inocentemente, em uma grande ilusão, alguém inventou o relógio achando que poderia marcar o tempo sem perceber que era ele que ia sendo marcado…

Uma hora da tarde.
Jovem Sebastião, amante do ócio e da filosofia passara toda a manhã sentado no meio fio com a cabeça baixa apoiada sobre os joelhos. Vagamente filosofava sobre o tudo e o nada. Assim, ele pensava em tudo e quase sempre concluía nada. Mas dessa vez foi diferente: o tudo e o nada são só possibilidades! Ergueu a cabeça satisfeito e levantou-se rápido. Mais rápido foi seu olhar que fisgou uma loira que por ali passava. Em apenas um segundo esquecera tudo o que filosofara e não sobrou nada. Em um ato incontido bradou:
- Ô beleza! Dessa fruta eu chupo até a caroço!
A loira fingindo-se de ofendida virou o rosto e mudou de calçada. Ele, coitado, sentiu um vazio de repente, uma certa solidão. Entrou em um bar, tomou uma… tomou duas… tomou três. Ao sair o mundo estava ligeiramente diferente, caminhando sem destino esbarrou em uma placa que assim dizia:

Promoção do dia: Respostas filosóficas por apenas 1 real“Conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres”
Evangelho segundo João
Três horas da tarde. Entrou em um edifício velho, atravessou um velho portão, seguindo por um também velho túnel. No fim deste havia uma luz, sob ela iluminado, redundantemente, um velho ancião de barba longa que lhe deu as boas vindas.
- Senhor… Ia dizendo ele quando foi innterrompido.
- Não digas nada, já sei o que queres, apenas escute, verdades…
E assim começou a falar continuamente.
- Vivemos alternando momentos de loucura com momentos de lucidez, para cada um desses momentos uma verdade. Verdade é o que buscas, não? A verdade é um todo inseparável. Por mais longa que seja a noite, há dia e por mais longo que seja o dia, há noite. Entendes? A verdade pode ser una ou várias. A verdade de uns é a loucura de outros, confunde-se com a mentira e quase nos engana. Emana do coração e da mente humana. Muitas vezes justa, muitas vezes insana.
Com um sorriso maroto e um ar filosófico o ancião disse ainda:
- Logo a verdade estará acima de ti!

Quatro e dez. Sentindo-se enganado, Tião tirou do bolso uma nota amassada de um real e entregou ao ancião. Baixou a cabeça e tomou o rumo de casa. Casa não, apartamento.

Na entrada de seu antigo prédio um caminhão lhe chamou a atenção, alguém estava de mudança. Curioso, sem saber que sua vida é que estava por mudar, foi até o porteiro saber de quem se tratava.
- É uma Dona pro 303, respondeu o porteiro. Verdade!!!
- Eu, hein?! resmungou Tião.
Nesse mesmo instante, uma linda mulata abriu a porta do elevador pedindo ajuda para carregar uma caixa. Tião imediatamente se prontificou.
- Bela morena! pensou.
Era mais que bela. Seu nome… Verdade!
Largos quadris, seios fartos, lábios carnudos, manifestação do absurdo, Verdade. Nada mais que a verdade em si, carne, carne e osso. O tudo. Nova moradora do 303, acima do seu 203.
Tempos depois Tião amigou-se e dedicou-se à Verdade. Adeus vã filosofia. Nada de tudo, tudo de nada. Sonho da humanidade, a única e verdadeira Verdade que conhecera sua vida inteira!

Quem tem medo de Aranha?



Tecnologia social ou “tecnologia do improviso”?
Moro em Niterói e trabalho no Rio de Janeiro, o engarrafamento é certo para ir e para voltar. O fluxo é lento e contínuo, centenas de carros atravessam a ponte. Já chegando ao Rio, uma imagem sempre me impressiona, o pátio do porto lotado de carros novos, milimetricamente organizados! Carros, carros e mais carros…
Inevitavelmente uma pergunta sempre me vem à cabeça, com tantos carros novos o que é feito dos velhos? Imagino milhares de concessionárias fazendo promoções de “usados”, imagino periferias abarrotadas de ferros velhos e desmanches. Imagino mais engarrafamentos! No entanto, em pequenas cidades do interior do Brasil, de norte a sul, oficinas caseiras dão outro destino aos veículos usados. Ali, eles são transformados em pequenos utilitários. Veículos de carga utilizados nas propriedades rurais para o transporte e escoamento da produção. Em Alfredo Chavez, município montanhoso localizado no sul do Espírito Santo, produtor de bananas e leite, circulam centenas carrinhos batizados “Aranhas”. Somente as “Aranhas” conseguem subir as encostas íngremes e passar por terrenos acidentados onde são plantadas as bananas. O espaço do carro é otimizado para o transporte da carga e para o combustível. Geralmente, do lado do motorista vai o bujão de gás, atrás, numa carroceria improvisada, vão os produtos. Nem sempre é assim, existem muitos modelos personalizados ou “customizados” ao gosto do freguês. Do carro usado aproveita-se o chassi, motor e parte da lataria. No Oeste de Santa Catarina e no Rio Grande do Sul veículos parecidos são utilizados no transporte de fumo, frutas e hortaliças. Em grande parte do nordeste milhares de veículos são adaptados para fazerem o transporte público, transporte escolar, mas isso é outra história….aguardem!